Natureza morta, sangue seco de um deus inexistente na ponta do trompete mágico de Ambrose Akinmusire. E se tocasse no Carnaval de Luanda?
Quantas vezes Harish Raghavan carregou aquele baixo às costas até aprender a sacar-lhe aquele som do nosso chingufu? Diálogo com o piano de Sam Harris. Triálogo – saxo, baixo e bateria. Vaidade de areia limpa no fundo do rio: o baixo a solo. O trompete entre a sangrar e sai, deixando lugar ao pianíssimo vibrar.
Quando entra um rasta, entra uma floresta numa sala. A floresta chega ao centro da alma humana com a sua resina capilar e a saudade de termos sido pássaros primatas. Apetece comer frutos silvestres. Que caem da árvore mitológica de sons: era bom que o jazz fosse também ao lábio do musseque.
Este quinteto de jazz com Akinmusire (trompete), Walter Smith (sax tenor), Harish Raghavan (baixo), Sam Harris (piano) e Marcus Gilmore (bateria) veio a Luanda saudar a data nacional, diz Jerónimo Belo que, de comum com o índio apache seu xará, possui o dom da persistência, conota Ambrose Akinmusire com uma enorme consciência da tradição jazzística norteamericana e desvenda que as elites africanas estão cada vez mais distanciadas do jazz, ao contrário do passado. Akinmusire é filho de pai nigeriano e esta é a sua primeira performance em terras dos seus antepassados.
Depois vêm diálogos entre o trompete e o saxo. Duas aves que se agasalham mutuamente.
E o piano de Sam Harris é uma paisagem urbana após a chuva, quando há uma reabsorção da humidade pela nostalgia do sem-tempo, na fronteira entre a indústria automóvel e a colheita do algodão. Tudo é branco como o sofrimento dos negros do Alabama, com a alma retraçada de blues e esse sol que desponta na boca do trompete de Ambrose Akinmusire. O jazz é um poema. Se lê com os ouvidos da alma.
Um poema de jazz percorre a noite como se fosse uma tarde de domingo, clímax erótico, viagem intercontinental sobre ondas salgadas, exército de sentimentos conquistando as margens do Ser, dor, digestão do vazio, caos metálico.

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